Simplicidade



Podia ser exagero da imaginação, mas a cidade inteira cheirava a mato. Cheiro de flores, bosta de cavalo e mato. Embaixo da ponte, Coria um rio raso e limpo. Uma loucura! Disseram todos. Vai morrer de tédio lá. Mas Beatriz estava radiante com os novos projetos, passar uma temporada em uma cidade do interior, fugir da agitação. Nas cidades pequenas todos se conhecem, todos são amigos, ela não era sozinha, mas sentia que não tinha amigos de verdade, no sentido romântico da palavra. “Eu quero amigos que mexam na minha geladeira sem pedir licença, que se atrasem para se esperar, que não tenham nenhum motivo para ficar comigo. Meus amigos não são assim, tenho amigos da faculdade porque precisamos de amigos lá por causa dos trabalhos, das viagens, não são amigos, só companhias. Tenho amigos do trabalho, mas a gente nunca sai pra se divertir, é só pra falar de trabalho, reclamar do chefe. A gente não torce um pelo outro, pelo contrário, a gente torce sempre para estar acima dos outros, talvez sejamos mais inimigos que outra coisa. Estou sempre acompanhada e sempre solitária.”
Aí bateu isso que chamam sonho de simplicidade, ela pensou em ir para uma cidadezinha qualquer esquecida do mundo onde ainda prevalecessem os verdadeiros valores humanos. A mulher encarou a garota de tatuagem no braço e malas na mão.
- Um quarto na minha pousada? Mas o que uma moça tão moderna vem fazer aqui? Tem parentes na cidade? Qual é o seu sobrenome?
- Não, não conheço ninguém aqui, só me parece um bom lugar para passar as férias.
- Mas veio sozinha? Não tem ninguém? Família?
“Por que ela não pode me atender como uma profissional normal? Daqui a pouco vai querer saber se tenho alguma doença”
- Eu vou ficar sozinha, algum problema?
- É que a moça não está entendendo, aqui não tem diversões que agradem uma moça de cidade grande. Somos pessoas pacatas e de bem, todas as famílias se conhecem e nos damos bem por isso, sabemos em quem confiar. Há muito tempo vivemos em paz, sem confusão e muitos alegam que isso se dá em parte porque não temos forasteiros. Sem falar que há anos atrás os jovens costumavam ir embora iludidos com essa coisa de progresso, liberdade, esqueceram os valores familiares, o lugar quase virou uma cidade fantasma, mas aos poucos recuperamos tudo, não sei o que vão pensar de uma moça que chega aqui de repente sem família, com vestimentas modernas demais, tatuagens... tudo isso pra jogar na cara de nossos jovens a vida que eles poderiam ter lá fora. Não sei se você seria bem recebida.
- Hum... mas como mantém uma pousada sem ... forasteiros?
- Todos os hóspedes são daqui. Pessoas idosas que não querem ou não podem morar com a família, às vezes preferem ficar aqui, pois têm pessoas da mesma idade para recordar o passado, rapazes que trabalham longe de casa, veja bem, rapazes e quase todos solteiros, nem sei dizer o que pensam sobre moças solteiras morando sozinhas.
“Ela não pode refletir a mentalidade de uma cidade inteira” – Eu quero ficar assim mesmo, não ligo muito para o que disserem de mim. Tem um quarto ou não?
- Tem sim.
- Ótimo. Olha, eu não quero perder tempo, quero explorar logo a cidade, tem algum clube onde eu possa aprender a montar cavalos?
- Há um clube muito bom, mas você precisa ser sócia para frequentar.
- Tudo bem, eu posso me associar.
- Não pode, precisa ter residência fixa na cidade para isso.
A recepcionista parecia triunfante em demonstrar mais uma vez que ela não estava em uma cidade turística ou hospitaleira. Não suportando mais ser contrariada, Bia encerrou a conversa e foi aproveitar seu primeiro passeio.
Os moradores perceberam logo que havia novidade na cidade, por onde ela andava era sutilmente observada. Encontrou uma pracinha com árvores, bancos graciosos, jovens conversando despreocupadamente. Realmente um lugar onde qualquer pessoa pode ser feliz. Ela não se achou muito adequada, não que usasse roupas vulgares, mas estava um tanto informal demais, ou talvez não fosse só a roupa, as outras jovens tinham uma expressão não jovial como a dela, apesar da pouca idade tinham o ar sério dos velhos, era isso. Mas jovens sempre são mais cosmopolitas. Ela se apresentou, tentou não forçar muito a barra puxando conversa,mas uma garota parecia querer dar-lhe uma chance.
- Você já teve família aqui? Qual o seu sobrenome?
“Porra, eu acho que família é a cosa mais importante do mundo, mas isso já ta enchendo o saco”
- Não, nunca tive família aqui. Então, o que vocês fazem pra se divertir? Tem algum lugar para ir à noite?
As garotas observavam com desdém seu jeans rasgado, seus cabelos encaracolados soltos e sua pessoa inteira gritando liberdade sentiam-se ofendidas e provocadas por aquela intrusa.
- Acho que você ia gostar do Corujão, é muito frequentado e combina com você.
Todos caíram na risada, inclusive uns rapazes que só observavam.
- Vocês são sempre tão cruéis.
Enquanto as garotas cochichavam algum segredo, um dos rapazes se aproximou e falou no ouvido de Bia.
- Corujão é o bordel da cidade.
Ao invés de ficar ofendida, ela deu uma grande risada, chamando a atenção das pessoas que passavam que lançaram olhares de reprovação, como se houvesse um limite para o barulho de uma gargalhada e ela tivesse ultrapassado muito esse limite.
- Pois saibam que estou gostando daqui, pode ser que eu passe alguns meses, ou pode ser que eu case, forme família e fique para sempre.
Um dos rapazes estava dando uma festa e Bia foi convidada. Ao sair da pousada refletiu sobre seu estilo, mas já estava irritada e percebeu que não tinha que mudar seu jeito, talvez eles é que precisassem de mais civilização.Estranhamente foi bem recebida na festa, todos simpáticos, cada convidado levou um prato, isso já é um sinal de modernidade,pensou. A festa acabou cedo e ninguém lhe ofereceu carona. No caminho ela já se sentia estranha e começou a pensar que algum dos pratos lhe fez mal. Era tarde.

Comentários

  1. Lindo texto
    E não devemos esperar por ninguem, temos que fazer as coisas por nos mesmos
    Estou seguindo

    Beijos
    @pocketlibro
    pocketlibro.blogspot.com.br

    ResponderExcluir
  2. Gostei do texto, bem diferente e criativo.
    Acho que seria uma bobagem outras pessoas mudarem por ela, mas o importante é que ela se sinta bem da forma como ela gosta de ser.
    Sem preocupações com o que os outros possam falar de seu visual ou qualquer coisa.

    Terá continuação?

    Beijoos, estou seguindo,
    http://ser-escritora.blogspot.com.br/

    ResponderExcluir
  3. Não, na verdade o conto foi um exercício de escrita que não saiu bem como eu queria, mas valeu ter feito, talvez um dia eu tente reescrever.

    ResponderExcluir
  4. Seu blog é muito interessante!

    Estou seguindo aqui.

    abraços!

    http://totalpinkprincess.blogspot.com.br

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Obrigada por visitar meu espaço. Fico muito feliz com comentários, mas apenas sobre a postagem. Opiniões, elogios e críticas construtivas são bem-vindos.
Para outros assuntos, use o formulário de contato.

Postagens mais visitadas deste blog

Atividade para o 8º ano - Interpretação de texto/ Gramática

Sugestão de atividade para 6º ano - Interpretação do texto O patinho bonito

Atividade de interpretação 8º ao 9º anos - Medo da Eternidade - Clarice Lispector